quarta-feira, 21 de março de 2012

O MARXISMO PRÁTICO E O MARXISMO TEORICO


Intelectual marxista, um dirigente revolucionário



György Lukács

Por Emir Sader*.

Trecho de texto publicado em István Mészáros e os desafios do tempo histórico, organização de Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile (Boitempo, 2011).

György Lukács viveu, na sua trajetória como intelectual, os dilemas de buscar dar continuidade às primeiras gerações de marxistas, que eram, ao mesmo tempo, intelectuais e dirigentes revolucionários. Líder do Partido Comunista (PC) da Hungria nos anos 1920, Lukács foi ministro da Cultura de um governo de coalizão, até que, depois de vários reveses nos debates internos do partido, resignou-se à sua condição de intelectual marxista, em participação direta na atividade partidária.

Embora não se constitua em algum dos casos típicos analisados por Perry Anderson em seu clássico livro Considerações sobre o marxismo ocidental – nem foi expulso ou viveu uma situação insuportável dentro do partido, nem foi vítima da repressão fascista –, Lukács representa um dos grandes dilemas dos intelectuais marxistas diante da chamada “stalinização dos partidos comunistas”, que estreitou as margens de debate interno, a ponto de inviabilizá-los.

Conforme os partidos comunistas deixavam de ser espaços abertos ao debate e à criação intelectual, bloqueando a articulação entre teoria e prática marxistas, produzia-se uma das grandes cisões de que o movimento comunista, socialista e de esquerda em geral passou a sofrer desde então: teorias sem práticas políticas e práticas sem teorias políticas. O marxismo perdia fertilidade concreta e a prática deixava de ser iluminada pela teoria.

Como teoria que pretende não apenas interpretar a realidade, mas transformá-la, o marxismo busca articular deciframento da realidade e sua transformação revolucionária. A interpretação sem seu desdobramento na prática política desvirtua a essência do marxismo, ao mesmo tempo em que a prática política sem sua interpretação radical fere outro dos seus postulados, formulado por Lenin: “Sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária”.

As gerações de Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo e Gramsci foram sucedidas por grandes teóricos, como Lukács, Jean-Paul Sartre, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Ernst Bloch – e depois deles uma nova leva de intelectuais revolucionários, da qual István Mészáros é exemplo –, entre tantos outros, brilhantes pensadores que nunca capitularam, mantendo-se firmes nas concepções anticapitalistas, apesar de tudo o que vitimava o marxismo e a esquerda em geral – da social-democracia ao stalinismo.

No entanto, o campo da esquerda, das forças anticapitalistas e socialistas passou a sofrer dessa cisão entre teoria e prática. Perderam fertilidade política, renunciaram à dimensão inerente ao marxismo de teoria articulada com a transformação revolucionária do mundo.

“Sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária”, afirmava Lenin. A prática política dos partidos de esquerda tendeu a deixar-se guiar pela agenda do sistema dominante, enquanto que os intelectuais tenderam ao ultraesquerdismo: entre uma teoria aparentemente perfeita e uma prática sempre heterodoxa, os intelectuais tendem a ficar com a teoria e a desprezar a prática política. Como resultado, ambos se esterilizam.

O mundo acadêmico – onde grande parte da intelectualidade desenvolve suas práticas profissionais – não foi poupado pelas grandes transformações operadas na passagem do período histórico anterior para o atual. Uma parte dos intelectuais, diante da transformação do mundo multipolar em unipolar, assumiu diferentes formas de adaptação à hegemonia capitalista e às variantes da doutrina liberal. Uma parte significativa segue processos de produção de conhecimento pertinente, porém prisioneiro da divisão técnica do trabalho acadêmico e da especialização correspondente.

Outro contingente, por sua vez, deixa-se aprisionar pelos mecanismos doutrinários, que desembocam em posições ultraesquerdistas, desvinculadas da realidade concreta. Os novos processos políticos latino-americanos representam estímulos para decifrar seu significado e para contribuir para seu aprofundamento. Questões centrais têm surgido com novas roupagens ou mesmo novas questões, desafiando a intelectualidade latino-americana. Esses processos avançaram com graus diversos de teorização, porém seguramente as dificuldades que enfrentam dependem também de profundo debate e elaboração teórica e política, para que possam efetivamente consolidar os avanços realizados e encaminhar-se para a construção de sociedades que permitam a superação da exploração, da opressão, da discriminação e da alienação.







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*Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo semanalmente, às quartas-feiras.

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